O progressismo no Canadá

Algumas das perguntas que mais recebo quando falo de imigração:

Como você mora no Canadá tendo tantas posições de direita? O país não está dominado pela esquerda? Você não teme ser perseguido?

Essas perguntas têm várias camadas de engano e confusão, então decidi que valia à pena escrever um artigo mais longo sobre o assunto.

O progressismo domina o Canadá?

Resposta curta: não.

Resposta mais complexa: o progressismo é a corrente política mais forte no país, mas ela enfrenta forte oposição e possui uma influência limitada na sociedade.

Em resumo: é forte, mas não é hegemônico.

Um dado para sustentar esse argumento: Trudeau está 40% de apoio e 55% de rejeição. Se as eleições fossem hoje, os conservadores elegeriam o Pierre Poilievre, que é um dos líderes mais à direita do partido conservador na última geração.

Com isso, não estou querendo tapar o sol com a peneira (veja que eu disse que os progressistas eram uma das correntes mais fortes): a esquerda de fato conseguiu implementar várias das suas pautas por aqui — legalização da maconha, aborto e discurso de gênero nas escolas públicas.

Porém, sua força está longe de ser dominante. Há uma diferença entre força e hegemonia.

Homeschooling, por exemplo, é totalmente liberado (e amplamente praticado). As escolas privadas têm ampla liberdade curricular. A oposição é articulada e tem changes reais de voltar ao poder.

Além disso, é preciso não perder o horizonte histórico: o Canadá sempre teve um alto nível de liberdade econômica e descentralização política (em certos períodos, até mais alto que os EUA).

Embora o progressismo tenha vencido o jogo na última década, o país continua sendo um dos mais livres do mundo e pode reverter o jogo já no próximo ciclo eleitoral.

Existem dinâmicas sociais que vão além da política

Creio que uma imagem equivocada do Canadá surge por dois motivos:

(i) a perseguição ao Jordan Peterson foi muito noticiada fora do país e

(ii) o Canadá é um país relativamente pequeno, então as pessoas projetam sobre ele elementos que retiram de outros lugares.

Novamente, meu objetivo não é negar o óbvio: o Peterson foi realmente perseguido. No meio universitário, há muitos radicais de esquerda. Entre os jovens, essa é uma tendência dominante.

Porém, fora desses círculos, a maioria dos canadenses simplesmente não liga muito para a política.

E, mesmo entre os que ligam, eles continuam compartilhando das características típicas da sociedade canadense: alto grau de coesão social e grau extremo de privacidade.

É preciso lembrar que a política não é o único fator que determina as características de uma sociedade.

O canadense médio, via de regra, odeia a ideia de “incomodar”. Isso é, francamente, levado a um grau cômico de tão extremo. Se você chegar aqui na semana de eleição, não vai desconfiar de que há nada fora do normal acontecendo, pois a maioria das pessoas simplesmente evita falar sobre o assunto.

Ou seja, mesmo entre os eleitores de Trudeau, pouquíssimos agem como radicais de esquerda. A grande maioria concorda com uma política ou outra do partido, mas raramente pensa muito sobre o assunto.

Em resumo, o fato dos conservadores estarem na minoria não afeta muito as dinâmicas do dia-a-dia. Simplesmente não existe aqui o mesmo nível de politização que tomou conta da sociedade brasileira.

Por enquanto, o extremismo está restrito a certos círculos altamente politizados, como alguns cursos universitários — onde o bicho realmente pega, como se vê no caso Peterson.

A dinâmica política canadense é bem diferente da americana

Esse assunto tem ramificações infinitas, então serei especialmente breve nessa seção (e talvez volte à ela no futuro): a política canadense é bem diferente da americana.

(Aliás, eu falei um pouco sobre isso nesse podcast com o Yuri Vieira e o Alexandre Soares Silva).

A confusão com os EUA é compreensível, porque o Canadá é um país pequeno, ofuscado pela sombra do vizinho gigantesco. E, de fato, há ligações muito forte entre os dois países. Afinal, se o mundo inteiro já presta tanta atenção ao que se faz nos Estados Unidos, imagine o país vizinho que (quase) fala a mesma língua.

Porém, o Canadá tem uma trajetória política própria, com inúmeras características peculiares.

Talvez a diferença mais dramática seja o fato de ser um país constituído por dois povos oficiais que nunca se integraram — os ingleses e os franceses — e um terceiro povo que foi ativamente mantido à margem (para ver como a colonização canadense foi diferente da brasileira, é só ler sobre os métis).

Um dado que mostra a peculiaridade do Canadá: o partido mais profundamente identificado com a esquerda (o NDP) hoje tem menos representantes no parlamento nacional do que o Bloc Québécois, um partido que defende a secessão do Québec e que inclui políticos oriundos de diferentes espectros ideológicos.

Por fim, o Partido Liberal canadense não é o equivalente ao Partido Democrata americano. Hoje, o partido tem um discurso à esquerda, mas a matriz genética do partido do é muito mais complexa. De certo modo, é o partido da elite local e das forças pró-federação, o qual soube navegar as disputas entre esquerda e direita para se manter no poder e manter a unidade política do país.

Mas as coisas não estão piorando? A liberdade não vai acabar? E os suicídios assistidos? E a ideologia de gênero nas escolas?

Esse tipo de questionamento é mais difícil de responder, porque a minha discordância é mais com a atitude por trás dos comentários do que com os próprios comentários.

Para ficar bem claro para quem não me conhece: sou católico, bem mais conservador do que a média, acho aborto inegociável, etc. Não estou dizendo que os progressistas estão corretos nessas pautas.

Também não estou negando que a última década teve uma série de vitórias importantes dos progressistas.

O que eu estou dizendo é o seguinte: não vejo motivo para entrar em pânico por estar na minoria.

Se formos entrar em pânico por isso, a presunção seria de que só podemos morar em um país perfeito, onde os políticos expressam exatamente os nossos valores.

Existiu alguma época em que isso foi verdade?

Creio que esse tipo de preocupação entra no que eu chamo de confusão de nível de abstração.

A discussão sobre os rumos da civilização é interessante, mas é pouquíssimo relevante para decisões concretas — e até mesmo para análises políticas. As civilizações se movem ao longo de séculos. O ciclo político dura poucos anos (às vezes até poucos meses).

A nossa vida ocorre em um espaço intermediário — não devemos nos preocupar demais com o rumo da civilização, nem com as próximas eleições.

Nossos deveres concretos já são preocupação o suficiente.

A decisão de emigrar não pode ser determinada apenas pela política.

Resumindo a resposta às perguntas do início do texto: a esquerda é forte por aqui, mas não é hegemônica. Seu poder é filtrado por vários outros aspectos da cultura e da sociedade.

E, o que é mais importante: a decisão de morar em um determinado país não pode ser feito apenas considerando a política do dia-a-dia.

A decisão de onde você mora deve ser vista à luz do seu projeto de vida. Quais são seus objetivos? Quais são suas forças? Qual é o seu grupo de referência social? O que você está tentando realizar?

A resposta para essas perguntas é extremamente individual.

Por isso, quando as pessoas me procuram para falar sobre imigração, meu principal conselho é encontre o nível correto de abstração. Se concentre naquilo que é existencialmente relevante para a sua decisão.

A política é importante? Sem dúvida.

Porém, questões aparentemente mais banais — como se inserir socialmente, cuidar da sua família e pagar suas contas — provavelmente são as únicas coisas que estão realmente na sua zona de controle — independentemente do país em que você esteja.

Se você está pensando em sair do país, recomendo que assista essa aula sobre como planejar uma vida no exterior.

Creio que ela vai lhe ajudar a encontrar o nível correto de abstração para pensar sobre essa decisão.

Photo by Hermes Rivera on Unsplash

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