Quando parei de escrever - Parte I: notas sobre a contemplação

Newsletter enviada em 25 de Julho de 2021

Já faz quase um ano que parei de escrever — uma marca considerável, levando em conta que foi a interrupção de uma série de dezessete anos de escrita quase constante.

Não parei de propósito, aliás. Quando anunciei, com muito desgosto e ambivalência, que interromperia o projeto Vida Concreta, minha expectativa era me livrar das atividades paralelas à escrita (escolher imagens, atualizar redes sociais, responder mensagens, manter servidores de newsletter e podcast, etc.) para ter mais tempo para escrever o que realmente me desse vontade.

Mas não foi isso que aconteceu. O que era para ser um breve intervalo foi se estendendo e minha vontade de escrever foi diminuindo, diminuindo, até quase se extinguir por completo.

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Também não foi uma interrupção satisfatória. Nos últimos meses, senti muita falta dos benefícios secundários do ato de escrever.

Enfatizo a palavra ato de propósito: com raras exceções, eu não me importo realmente com o destino final de nenhum dos textos que escrevi até agora. Em uma interpretação talvez um pouca extrema do Fedro, eu os considero apenas instrumentos daquilo que realmente importa: entender algum assunto. Como dizia o grande César Miranda, escrevo para aprender, não para ensinar.

Obviamente, isso só funciona se você escrever com esse objetivo firmemente em mente. Os textos podem ser produzidos com objetivos bem distintos: registrar algo, produzir um impacto afetivo ou convencer alguém a agir de determinado modo, para citar alguns exemplos.

Esses objetivos não me interessam. Gosto de escrever para ganhar clareza. Escrevo para que, ao final do texto, eu entenda o assunto um pouco melhor do que eu o entendia antes de iniciá-lo.

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Notem que não é exatamente o ato de escrever que traz essa clareza. Na verdade, a escrita — como qualquer outra forma de discurso — pode nos levar ainda mais fundo no auto-engano.

Nossa mente tem uma tendência fortíssima em procurar justificar aquilo que já acreditamos — mesmo quando acreditamos em algo pelos mais falsos dos motivos.

Em geral, nos iludimos quanto à nossa própria racionalidade. Via de regra, nós queremos fazer algo por motivos que apenas intuímos parcialmente e depois, enquanto conversamos com outras pessoas, criamos pseudo-justificativas a posteriori para proteger o nosso senso de identidade, inserindo ações semi-conscientes e até mesmo acidentais em uma narrativa coerente.

Pequenos auto-enganos fazem parte do nosso cotidiano e podem rapidamente se acumular se não fizermos um esforço constante em nos afastar deles. O que chamamos de “razão” muitos vezes é o mero esforço em justificar os enganos acumulados.

Quem já amadureceu o suficiente para colocar alguns anos de distância das suas conversas de adolescente sabe perfeitamente do que estou falando: quanto mais inteligente a pessoa, mais capaz ela é de arranjar argumentos falsos para fugir do assunto principal, entortando a discussão ao sabor das tensões emocionais. O mesmo ocorre nas famigeradas “DRs” entre casais, onde a racionalidade argumentativa pode perfeitamente tornar andar lado-a-lado com o ressentimento, a raiva e o desejo de ferir e desestabilizar o outro. Algo ainda mais extremo ocorre na depressão, onde o sujeito usa o discurso ao mesmo tempo para pedir ajudar e argumentar contra qualquer solução, entrando em contradição consigo mesmo e afundando ainda mais no estado do qual gostaria de se livrar.

Em outras palavras: não somos tão racionais quanto imaginamos — e não é a escrita ou a leitura que irá nos salvar disso.

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Mas se a escrita pode se tornar apenas outro modo de auto-engano, de onde vem a clareza que eu descrevi anteriormente? Para usar um termo pomposo, mas consagrado na filosofia: da contemplação.

Por contemplação, não me refiro a nenhum processo místico ou meditativo, mas a algo ao mesmo tempo simples de resumir e difícil de explicar: a atenção concentrada na realidade enquanto tal.

Todos nós sabemos intuitivamente o que é atenção: é o ponto focal da nossa consciência. O que é menos óbvio é que atenção continuada é uma atividade muito difícil. Nós nos distraímos com facilidade e nos conformamos em perceber um aspecto secundário de um objeto, nos dando por satisfeito antes de chegar à sua essência dele. Além disso, a atenção não é uma faculdade específica (como a razão), mas o centro da consciência, a qual faz uso de diversas faculdades — memória, afetos, imaginação — para cercar o objeto que estamos tentando compreender.

Talvez o parágrafo anterior soe abstrato demais para alguns. No entanto, nele eu estou descrevendo apenas aquilo que todos nós já fazemos no esforço de entender o mundo que nos cerca. E eu diria ainda mais: creio não ser um exagero dizer que uma das principais contribuições da filosofia antiga foi ter criado um vocabulário bastante preciso para descrever processos cognitivos que todos nós executamos no esforço de absorver a realidade.

Em outras palavras, a contemplação não é uma prática distinta e esotérica. Ela é apenas uma atividade que todos nós fazemos de vez em quando.

A filosofia, por sua vez, também não é uma disciplina separada da vida comum: ela é apenas o esforço repetido de executar atos de contemplação.

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Sei que a seção anterior ficou um pouco densa, mas eis algo que talvez ajude a explicar meu modo de enxergar essa questão. Creio que, em nossa cultura, há dois modelos bastante comum por trás de todo o debate sobre racionalidade — e creio que ambos estão errados.

O primeiro é o "modelo Sherlock Holmes”: a racionalidade é um propriedade de pessoas especiais, capazes de analisarem tudo por meio de rigorosos processos lógicos. Nesse modelo, as pessoas inteligentes são uma espécie de super-computador, sendo capazes de processar rapidamente — e logicamente — uma quantidade enorme de dados. As demais pessoas entram em duas categorias: ou possuem um “hardware” fraquinho que as impede ser seguir raciocínios longos ou, pior ainda, são incapazes de qualquer racionalidade, tirando suas opiniões de convenções sociais ou de pressões emocionais (desejos, temores, etc.).

Esse modelo está errado porque parte de uma descrição falsa da inteligência humana. O nosso modo de compreender o mundo não consiste em uma pura concatenação de juízos e proposições, mas de uma uma complexa dialética entre emoção e imaginação, sensação e memória, pela qual vamos aos poucos integrando novos aspectos da realidade à nossa consciência. O raciocínio lógico-matemático é apenas um componente dessa dialética. Portanto, as pessoas que ficam impressionadas demais com esse modelo, longe de serem os arautos da racionalidade que se imaginam, frequentemente deixam que sua suposta rigorosa argumentação lógica siga caminhos ditados por pressões emocionais inconscientes — uma escravidão emocional que se torna ainda mais forte na medida em que o sujeito tenta, em vão, expulsar essa dimensão da sua consciência.

O segundo modelo é a “racionalidade enquanto teoria", segundo o qual a racionalidade está em seguir uma teoria supostamente perfeita. Nesse modelo, ser inteligente é ser capaz de reproduzir um sistema de pensamento previamente elaborado. Esse é o modelo que reduz a profunda inteligência criativa de Platão ao seu pálido reflexo no platonismo — a mera repetição dos chavões de manuais. Entram nesse categoria também o relativismo (paradoxalmente, onde a verdade está em negar a existência da verdade), os diversos modos de pós-modernismo (onde a "teoria verdadeira” é um certo estilo discursivo) e mesmo o cientificismo (onde a verdade é o último consenso da burocracia científica).

Esse segundo modelo, em todas as suas variantes, também está errado, pois ele pressupõe que a verdade última da realidade já foi descoberta e que tudo que precisamos fazer é repetir um conjunto de dogmas.

Nada disso é inteligência. Nada disso é filosofia.

Nada disso é, aliás, nem mesmo a prática cotidiana das pessoas que, ao longo dos séculos e séculos, foram capazes de usar a inteligência para resolver uma infindáveis de problemas práticos, por meio da contemplação e da criatividade.

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Eis um modelo melhor: a realidade é sempre maior e mais complexa do que aquilo que está registrado em qualquer teoria ou daquilo que está na consciência de qualquer pessoa em particular. Nós somos animaizinhos pequenos em um mundo enorme, o qual permanece em grande parte oculto à nossa consciência.

Porém, por meio da contemplação — da atenção continuada — nós podemos ir ampliando o nosso círculo de consciência e integrando aspectos mais amplos da realidade.

Nesse modelo, não existe pessoas que estão certas e pessoas que estão erradas, pessoas que vêem a realidade e pessoas que estão em um mundo ilusão. Na verdade, todos nós estamos mais ou menos certos e errados sobre a natureza da realidade. Isto é, a própria natureza humana consiste em ter apenas uma apreensão parcial e imperfeita da natureza última das coisas.

Porém, essa imperfeição não é estática ou constante. Ela pode ser diminuída por meio da prática filosófica — outro nome para a prática contemplativa. Por meio dessa prática, o mundo se torna mais claro, mais definido, mais legível. Não se trata de uma mudança radical, de uma transfiguração da consciência, mas de um ganho progressivo de clareza.

Eis uma imagem que pode ajudar: a inteligência não consiste em ter acesso a outro mundo, como alguém que adormece e se vê no meio de um sonho, mas no progressivo ganho de definição de quem observa o nascer do sol. Na medida em que sobe no firmamento, o sol não altera a natureza última da paisagem que nos cerca. Porém, minuto a minuto, a quantidade crescente de luminosidade vai revelando mais detalhes daquela mesma paisagem que já estava presente na nossa consciência. Começamos a perceber novos detalhes nas casas, nas árvores e nas ruas que nos cercam

Esse ganho progressivo de clareza é justamente o grande benefício de uma prática contemplativa.

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Outro modo de dizer a mesma coisa: todos nós percebemos uma parte da realidade que nos cerca. Cada um de nós possui um grau distinto de clareza quanto aos seus vários aspectos: há objetos que ignoramos completamente, outros que percebemos apenas vagamente e outros que podemos descrever em detalhe.

O mundo interior de cada um de nós é, portanto, um reflexo imperfeito da realidade que nos cerca. Não há pessoas perfeitamente racionais ou perfeitamente irracionais. A razão é apenas um dos vários elementos do processo dialético pelo qual tentamos digerir os vários elementos do nosso mundo anterior.

Infelizmente, poucas pessoas percebem que estamos todos nesse estado intermediário — nem sábios, nem tolos — e que há ainda um enorme espaço para o progresso dentro desse espaço. Ficamos esperando soluções supra-humanas — a salvação por um intelecto assombroso ou pela Teoria Verdadeira — quanto tudo que existe no nosso plano é esse ganho progressivo de clareza pelo esforço contemplativo.

Quem descobre e entende isso, no entanto, possui um enorme tesouro.

A contemplação — e não a razão — é o principal instrumento que possuímos para ampliar nosso mundo interior. Cada vez que repetimos esse ato, ganhamos um pouco mais de clareza quanto ao mundo que nos cerca. Não é possível exagerar os benefícios dessa atividade: eu diria que essa é uma das principais ferramentas que possuímos para melhorar nossas vidas.

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Falei muito e ainda nem comecei a falar sobre a escrita. Fica para outro dia, se Deus quiser.

(E se eu retomar o hábito de escrever, claro).

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