Quando parei de escrever - Parte II: escrever, pensar e publicar

Quando enviei a última newsletter, juro que tinha na cabeça, não apenas um plano para a Parte II, mas até para uma Parte III e IV. Mas está na hora de admitir — para mim mesmo — que não vai rolar.

(Tem até uma certa coerência simbólica em deixar uma série sobre não-escrever inacabada.)

Mas, para não deixar aqueles rascunhos se perderem por completo, resolvi fazer uma super-edição reunindo as ideias que eu tinha planejado expor em mais detalhes.


Não sei o quanto isso é comum, mas eu não sou capaz de retomar um texto meu incompleto para concluí-lo depois de um longo intervalo.

Eu sempre escrevo procurando manter um fluxo contínuo de consciência, mantendo tanto o mesmo tom como um encadeamento orgânico, sugestivo, algo que lembre um passo após o outro em uma caminhada.

Creio que esse é o estilo ideal para transmitir uma postura filosófica, pois, assim, o texto vai guiando o leitor por uma série de intuições. Ao final do caminho, o leitor pode escolher quais intuições descartar, adotar ou integrar no seu próprio modo de ver o mundo. O ensaio não tem a aridez da estrutura lógica de manuais e artigos científicos, nem o caráter apelativo e emotivo de um texto retórico, ou mesmo a verbosidade de argumentos e contra-argumentos de um texto mais dialético.

O problema é que só consigo fazer isso se eu estiver com a imagem do todo em mente enquanto trabalho em cada uma das partes. Se eu precisar passar um longo tempo antes de voltar ao texto, a imagem do todo na minha cabeça começa a mudar e eu preciso rescrever tudo de novo para reajustar o fluxo ao novo tom.

Obviamente, isso não é um grande problema se é um texto de poucas páginas. Mas o leitor certamente pode imaginar o inferno que se torna escrever algo mais longo. Devo ter rescrito a tese de doutorado de uma ponta à outra três ou quatro vezes, produzindo efetivamente umas mil páginas para tirar umas duzentas ou trezentas páginas finais (sem contar os rascunhos, anotações, etc.).

De lá para cá — quase uma década — já devo ter abandonando algumas milhares de páginas de rascunhos para livros. Sempre que conseguia avançar um pouco, a vida impunha alguns intervalos longos, e eu precisava recomeçar a rescrever tudo, sem jamais conseguir chegar ao final.

Nos últimos meses, um dos meus pensamentos recorrentes tem sido o seguinte: por que diabos Sísifo não deixa aquela porcaria de pedra no chão?


Por isso, minha motivação por trás dessa última série abandonada era esclarecer minha própria ambivalência com a escrita. Por que acabo sempre voltando para essa atividade exaustiva? Por que não… simplesmente deixar para lá?

Meu ritmo de escrita, de fato, foi caindo progressivamente nos últimos cinco anos, até despencar para quase zero no ano passado. O motivo da queda é bem mais simples de explicar do que o próprio início da atividade — afinal, o que espanta no mito é que Sísifo continue tentando empurrar a pedra para cima, não que ocasionalmente a deixe cair.

Comecemos pelo mais fácil, então. Por que parar? Bom, para usar a a linguagem dos economistas, meu “custo de oportunidade” aumentou muitos nos últimos anos. Com a imigração e nova carreira, cada texto “custava” tempo que poderia ser gasto em atividades domésticas e profissionais. Escrever, em português, se tornou um puro “custo”, desconectado da minha carreira e até da maioria das minhas interações sociais. Com a chegada da bebê e de sucessivas promoções, o custo de oportunidade aumentou ainda mais, ao ponto de se tornar impraticável.

Pior ainda: ter um bebê no meio da pandemia, longe da rede de apoio familiar, significava que eu não tinha mais nenhum bloco de três ou quatro horas contínuas para manter esse “fluxo de consciência” que citei anteriormente. Muito menos, a garantia que eu poderia retomar o primeiro rascunho nos dias seguintes, antes que a “imagem de conjunto”, também citada antes, mudasse significativamente.

Por que não parar, então?

Por que continuar escrevendo?


Às vezes eu me pergunto se é verdadeiramente uma escolha. Meu pai e meu avô são escritores. Lembro que a ideia de escrever já me interessava ainda na adolescência. Talvez até antes. O que será que me atraía naquilo?

Escolhi o Fedro de Platão como tema de doutorado já por causa dessa ambivalência. Apesar de ter quase uma compulsão por escrever, sempre tive uma desconfiança pelo produto final. O texto sempre me parecia muito mais um meio do que o objetivo final da escrita.

Via de regra, prefiro mil vezes conversar a ler ou escrever. Falar é mais rápido, mais fluído, mais concreto, mais pessoal. A escrita é cheia de ciladas: é possível entrar em labirintos argumentativos, becos-sem-saída, adotar uma voz falsa, mergulhar no próprio umbigo.

Mas conversar também tem suas ciladas: a própria dinâmica da oralidade favorece uma dose de distração, pois é fácil e tentador (e, muitas vezes, também saudável) pular rapidamente de um assunto para o outro, voltar ao terreno mais agradável do consenso, se restringir aos pressupostos e interesses compartilhados.

Toda conversa, afinal, é uma espécie de média — como o Alexandre Soares Silva disse na newsletter dele (cito de cabeça, certamente piorando a frase original), o nosso QI se torna a média entre a nossa inteligência e a inteligência daquele com quem estamos conversando.

Em suma, tanto falar quanto escrever — e tanto ler quanto ouvir — possui suas vantagens e limitações. Faz sentido, portanto, fazer um pouco dos dois, dependendo do momento e dos nossos objetivos.


O bom da escrita não é propriamente escrever, mas a atitude mental que precede certos textos. Para escrever um ensaio com sinceridade, você precisa se recolher, meditar, se concentrar e repensar as próprias opiniões.

O ato de escrever lhe permite um grau de concentração que a dinâmica da oralidade não permite. Além disso, ao se forçar a colocar em uma estrutura fixa e verbal as intuições que estão circulando na sua consciência — e mesmo as que estão apenas semi-conscientes — sob a forma de imagens, analogias e impressões, você torna essas mesmas intuições mais concretas, mais nítidas, e, frequentemente, consegue até mesmo adquirir novas intuições durante o processo de escrita.

Ou seja, o ato de escrever pode ser um instrumento para a atividade contemplativa e, portanto, um instrumento para o crescimento pessoal.


Mas eis a parte delicada: escrever pode ajudar na contemplação, mas o próprio texto é só o reflexo imperfeito daquele ato contemplativo. Por isso, é preciso ter cuidado para não se deixar seduzir demais pelo texto.

Ele é importante enquanto registro, mas mais importante é o que está fora do texto, aquilo que lhe dá fundamento e razão de ser: a própria intelecção da realidade.


Chego, então, a um outro problema: os motivos anteriores explicam porque escrever, mas não porque publicar.

Afinal, os parágrafos anteriores justificam a importância de se ter uma espécie de diário filosófico, a prática de reservar alguns momentos para elaborar os próprios pensamentos.

(Inclusive, imagino que essa é a razão da popularidade daquela técnica de escrever páginas matinais, o que não funciona para mim, mas imagino que é uma boa para algumas pessoas).

Porém, escrever não significa necessariamente preparar algo para publicação. As tais páginas matinais, por exemplo, não são feitas para serem publicadas. Um diário filosófico apressado, sem revisão ou edição, cumpre muito bem sua função de auxiliar o processo contemplativo — mesmo que jamais venha a público, mesmo que seja praticamente ilegível.

A publicação é uma etapa distinta da escrita — ela é a preparação do texto para as outras pessoas.

Essa etapa requer outro tipo de perspectiva: imaginar o leitor-alvo, identificar o tom apropriado, os pressupostos comuns, a sequência mais didática e efetiva — enfim, todo aquele trabalhão que descrevi lá em cima

Em outras palavras, um diário filosófico gera um bem para o próprio autor, enquanto o benefício do ensaio bem planejado vai para o leitor — um benefício que vem de um custo enorme para o autor.


Creio que essa tensão explica boa parte da dificuldade na produção e financiamento das artes em geral.

O sujeito com mentalidade criativa está motivado por uma intuição pessoal — seja uma ideia, uma forma estética, ou qualquer outra coisa. O processo criativo exige que ele invista uma quantidade enorme de esforço em explorar essa intuição, mesmo sem saber o que fará com ela, mesmo sem saber se sairá jamais um “produto” objetivo dali.

Para o sujeito criativo, essa exploração tem valor em si mesmo: ele sente que está realizando algo, mesmo que a realização aí seja simplesmente satisfazer sua curiosidade.

Para quem está de fora, para os consumidores, essa exploração não tem valor algum. Eles podem até possuir um enorme interesse pelo produto final — pela música, pelo filme, pelo livro — mas apenas depois que ele for elaborado para “consumo externo", transformado em um produto fechado, formatado, editado.

Há riscos nos dois polos dessa equação: é possível "formatar” a obra cedo demais, forçando a publicação de um produto apressado, apenas para ganhar uns trocados; é possível se perder na etapa de exploração, sem jamais produzir algo de valor para terceiros.


Resumindo em termos simples: você escreve para si mesmo, mas publica para os outros.

A atividade contemplativa e artística é o momento onde você gera valor para si — a publicação é quando você distribui esse valor com os outros.

Mas a geração de valor por meios artísticos segue uma lógica bastante peculiar, a qual varia bastante dependendo do meio em questão.

No caso da escrita, o leitor é, de certo modo, co-autor do livro — afinal, um livro sem leitores não tem valor algum. É preciso que vários leitores invistam dezenas de horas na absorção de um livro para que ele passe a realmente gerar valor.

Outra coisa curiosa do valor da publicação é que ela é, ao mesmo tempo, difusa e de longo prazo: o valor de uma publicação literária se espalha pela cultura de um modo complexo e imprevisível. As ideias de um texto acabam compartilhadas por WhatsApp, repetidas em conversas particulares, transformadas em novas ideias por outros autores, além de poder deixar sementes que brotarão muitos anos depois, quando a memória mesma do texto original tiver desaparecida.

O potencial dessa geração de valor certamente é o que atrai muitos à escrita e outras modalidades artísticas. Porém, o outro lado dessa equação é que, por ser uma influência difusa, é bastante difícil para o autor capturar parte do valor gerado pela sua criação. Em última instância, as boas produções culturais geram mais valor para os outros do que para o próprio criador, já que não há nenhuma métrica ou mecanismo confiável para “monetizar” impactos culturais de longo prazo.

Creio que, em parte, é por isso que as sociedades tendem a atribuir um papel de honra às personalidades criativas. De certo modo, a reputação é também um mecanismo de “feedback social”, um modo de recompensar alguém por criar um bem social, um “ativo” que se agrega ao capital cultural de uma comunidade.

(Mas, obviamente, mecanismos de incentivos reputacionais não são suficientes: afinal, as personalidades criativas também têm contas a pagar. Por isso, vejo com bons olhos essa ebulição de cursos e comunidades digitais — é um modo de incentivar a criação de capital cultural, mesmo considerando que, naturalmente, a qualidade dos produtos varie bastante.)


Depois desse tour conceitual, volto ao meu dilema com um grau maior de especificidade: minha dúvida não é exatamente se eu devo escrever, mas se eu devo publicar. Afinal, escrever é quase um impulso natural para mim, enquanto publicar requer um investimento considerável de tempo.

Por isso mesmo, acabo passando tanto tempo no Twitter: a cracolândia da internet tem ao menos uma vantagem — é o lugar para escrever rapidamente, sem possibilidade de edição, e conseguir feedback imediato. Ou seja, é a rede mais próxima da oralidade e com menos custo de produção; um bom mecanismo para testar ideias sem compromisso de construir algo de longo prazo; é quase a pura escrita, sem qualquer preocupação com a publicação ou posteridade.

Mas fica a dúvida: será que está na hora de escrever algo de longo prazo? Para usar novamente a linguagem dos economistas : considerando que o meu custo de oportunidade disparou, ainda faz sentido investir na produção de ativos culturais? E, se for o caso, em quais investir?

Esses são os dilemas que estão na minha cabeça. Passei os últimos dias revirando os antigos rascunhos e me perguntando se vale a pena começar de novo a empurrar a pedra ladeira acima.

Provavelmente voltarei a esse assunto em breve.

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